segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Eu

Esses dias me encontrei andando na rua.
Eram onze e meia, meio dia, no centro da cidade, na Rua dos Andradas com o sol à pino. E lá estava eu saindo andando tranquilamente pelo calçadão...
Obviamente não compreendi de primeira, tive de forçar os olhos umas três vezes, mas não tinha como negar, era eu. Um pouquinho diferente, uma coisa que contra, mas definitivamente era eu.
Era engraçado, eu e o outro eu que estava caminhando na rua tínhamos algumas diferenças nítidas, a começar pela barba feita, pelo terno cinza justíssimo e o topete alto e ridículo que ele estava usando. Em que Universo eu estaria vestindo aquilo?!
No fim, depois de hesitar um pouco decidi ir tratar com aquele estranho que era eu. Interpelei-o na rua logo de frente e cumprimentei ele, e de imediato nos abraçamos fortemente como amigos que não se viam a muito tempo. Com certeza ele também sabia que ele era eu, e vice e versa.
Por ser próximo a hora do almoço, ele decidiu me convidar para almoçar num restaurante chinês que havia nas proximidades. Chegamos, nos servimos e conversamos e rimos a refeição toda. Em nenhum momento conversamos sobre essa coisa da identidade e tudo mais, nem eu nem ele estávamos dispostos a começar esse tipo de confusão na hora do almoço. Conversamos sobre os planos, sobre nossos empregos, ele perguntou como andava minha vida de professor de colégio, e eu perguntei como andava sua vida de advogado. É claro que sabíamos as profissões uns dos outros.
Mas tínhamos muito em comum, é claro. Rimos ao perceber que nenhum de nós se serviu de carne vermelha nem nada com cebola, e que tínhamos pego praticamente porções idênticas de comida. Conversamos sobre os amigos do passado, sobre as maluquísses da nossa juventude, sobre nossas paixões e anseios, sobre as mulheres que amamos e deixamos de amar. Conversamos sobre futebol, sobre literatura, sobre filmes de comédia pastelão. Conversamos todo tipo de amenidade que bons amigos conversariam depois de muito tempo sem se ver.
Por fim acabou o almoço, e ele estava atrasado para uma audiência no foro municipal, e eu atrasado para uma aula de química que teria que dar em um cursinho pré-vestibular. Saímos do restaurante e nos despedimos calorosamente, mas não combinamos de nos encontrar novamente. Melhor deixar essas coisas por conta do acaso, não?

Ao chegar de noite em casa, tomei um banho, descansei e jantei com minha esposa. Quando estávamos arrumando a cozinha contei pra ela do ocorrido, em um relato longo e rebuscado, digno para um evento tão raro. Ela ouvia quieta, e sua única reação era franzir a testa esporadicamente. Depois de finda a narrativa ela olhou fundo dentro dos meus olhos, com um ar metade seríssimo e metade enternecido e disse:
-"Amor, não leva a mal o que eu vou te falar, mas esquizofrênica não tem graça, tem é tratamento, isso sim!!!"